Resenha | Vulgo Grace (Alias Grace), de Margaret Atwood.
- Isabela Lima
- 29 de abr. de 2018
- 8 min de leitura

Ficha Técnica
Título: Vulgo Grace (Alias Grace)
Autor(a): Margaret Atwood
Edição: 2017
Ano de publicação: 1996
Páginas: 511
Editora: Rocco Ltda.
Vulgo Grace, em inglês Alias Grace, de Margaret Atwood, publicado em 1996 vai narrar a história de Grace Marks. Do Norte da Irlanda, ela, seus pais e irmãos emigraram para o Canadá em busca de uma vida melhor. Trata-se de uma história baseada em fatos reais. Um caso que ficou conhecidíssimo na época por Grace Marks, a personagem principal ter sido cúmplice com a ajuda de James McDermott pelo assassinato de seu senhor Thomas Kinnear e sua governanta Nancy Montgomery.
“Meu nome é Grace Marks e sou filha de John Marks, que vive na cidade de Toronto e é pedreiro por profissão; viemos para este país vindos do Norte da Irlanda, há uns três anos; tenho quatro irmãs e quatro irmãos, uma irmã e um irmão mais velhos do que eu; fiz dezesseis anos em julho passado. Vivi como criada durante os três anos que passei no Canadá, em vários lugares...” (Vulgo Grace, p. 111)
A história é contada em primeira pessoa por Grace, mas em alguns momentos é narrada pelo Dr. Simon Jordan, o atual médico que através do Reverendo Verringer começa a analisar Grace a fim de que se consiga saber se ela é ou não culpada pelos crimes de assassinato de Thomas Kinnear e Nancy Montgomery.
A questão central do livro é esta: seria Grace uma assassina ou uma pobre inocente?
Jordan está empenhado em tentar desvendar os mistérios que rodeiam Grace Marks. O médico é sonhador e tem como objetivo construir manicômios higienizados, onde os pacientes possam de fato curar-se de suas mazelas. Ele passa a ter sessões diárias com Grace e ela, receosa, lhe relata sobre toda sua vida.
“Vivíamos numa cabana com um telhado cheio de goteiras e dois quartinhos, na saída de uma aldeia perto de uma cidade que eu não mencionei nos jornais, porque minha tia Pauline pode ainda estar viva e eu não queria lhe trazer nenhuma desgraça.” (Vulgo Grace, p.120)
A vida difícil de Grace desde a infância e a quase nula instrução que ela possui a tornaram uma garota leiga, mas estaria sendo injusta se não dissesse de sua capacidade de extrair ensinamentos das situações pelos quais passou. A viagem pelo mar que ia levar sua família e ela para o Canadá acabou sendo traumática, pois sua mãe ao pôr os pés no navio, decretou sombriamente que sentia que não sairia viva daquele navio. Ela acabou morrendo de alguma causa desconhecida, pois o médico lava as mãos e a deixa em agonia. Grace acredita que foi por causa de uma gravidez que sua mãe morrera. A cena dos marinheiros jogando o corpo no mar enrolado num lençol é forte e nunca mais sai da cabeça de Grace, que volta e meia a revive.
“Não chorei. Parecia que tinha sido eu, e não minha mãe, que tinha morrido; fiquei paralisada, sem saber o que fazer em seguida. Mas a Sra. Phelan disse que não podíamos deixa-la ali deitada e perguntou se eu não tinha um lençol branco para o funeral. E então comecei a ficar terrivelmente preocupada, porque tudo o que tínhamos eram três lençóis. Havia dois lençóis velhos, que tinham se desgastado com o uso, e então foram cortados em dois e costurados, e o lençol novo que tia Pauline nos dera e eu não sabia qual usar. Parecia desrespeito usar um velho, mas, se eu usasse o novo, seria um desperdício no que dizia respeito aos vivos e toda minha dor concentrou-se, por assim dizer, na questão dos lençóis. Finalmente eu me perguntei o que minha mãe iria preferir e, já que ela sempre se colocara em segundo lugar na vida, decidi pelo lençol velho, que ao menos estava razoavelmente limpo. O capitão foi notificado e dois marinheiros vieram para levar minha mãe para o convés; a sra. Phelan subiu comigo e nós arrumamos, com os olhos fechados e os bonitos cabelos soltos, pois a sra. Phelan disse que um corpo não devia ser enterrado com os cabelos presos. [...] Ela parecia pálida e delicada, como uma flor de primavera, e as crianças se colocaram à sua volta, chorando; fiz com que cada uma delas a beijasse na testa. Um dos marinheiros arrumou o lençol em volta dela com muita destreza e costurou-o bem apertado, com um pedaço de uma velha corrente de ferro nos pés, para fazer o corpo afundar. Eu me esqueci de cortar uma mecha de seus cabelos para guardar de lembrança, mas estava tão confusa demais para me lembrar disso. Assim que o lençol cobriu seu rosto, tive a sensação de que não era minha mãe que estava ali. Um pastor que estava a bordo leu uma breve oração e com os icebergs flutuando ao redor e o nevoeiro entrando, minha mãe foi baixada ao mar. Até aquele momento, eu não tinha pensado para onde ela iria e havia algo de terrível nisto, imaginá-la afundando num lençol branco sob os olhos fixos de todos os peixes. Era pior do que ser colocado dentro da terra, porque, se uma pessoa está numa sepultura, ao menos você sabe onde ela está.” (Vulgo Grace, p.139-140)
Grace é forte, resiliente passa mais de trinta anos na cadeia, expiando um crime ao qual nem ela mesma tem ideia se o cometeu ou não. Depois do evento traumático que sofrera – a morte de sua mãe -, Grace passa ser bastante imaginativa.
“Quando estávamos na calmaria e no meio de um denso nevoeiro, o cesto com o bule de tia Pauline caiu no chão e o bule quebrou. Ora, aquele cesto ficara no mesmo lugar durante toda a tempestade, apesar de todo o jogo e balanço do navio, e estava amarrado na cabeceira da cama. [...] Achei que tinha sido o espírito de minha mãe, preso no porão do navio porque não pudemos abrir uma janela e zangado comigo por causa do lençol velho. E agora ela ficaria presa ali para todo o sempre, ali embaixo no porão, como uma mariposa dentro de uma garrafa, velejando de um lado para o outro por esse oceano escuro e tenebroso.” (Vulgo Grace, p. 141)
Quando chega a cidade, logo seu pai a faz trabalhar para sustentar toda a família, já que o pai vive bêbado e não mais trabalha como antes. É assim que através de indicações, Grace começa a trabalhar como criada na casa da Sra. Parkinson. Ela passa a nutrir ideias sobre como mataria o pai, que vive lhe atazanando por dinheiro a cada dia mais em que está trabalhando.
“Comecei a ter ideias sobre a panela de ferro e quanto ela era pesada e, se por acaso eu a deixasse cair em cima dele enquanto estivesse dormindo, certamente esmagaria sua cabeça, matando-o de vez, e eu poderia dizer que tinha sido um acidente; eu não queria ser levada a cometer um pecado tão grave, embora receasse que o ódio contra ele que queimava meu coração acabasse me obrigando a isso.” (Vulgo Grace, p. 149)
Ela decide sair de casa e passa a morar fixamente na casa da sra. Parkinson. Grace é calada, quieta, não tem muitos amigos durante toda sua vida. Por isso que quando conhece Mary Whitney ficam amigas instantaneamente. Mary é espontânea, espirituosa e totalmente o oposto de Grace. Ela acaba lhe ensinando diversas coisas sobre a vida em si e Grace vai falar de sua amiga até o fim da narrativa, o que só demonstra a importância da amizade que ambas tinham em comum.
“Grace, você vai ser muito bonita, logo estará virando a cabeça dos homens. Os piores são os cavalheiros, que acham que têm o direito a tudo o que desejam, e, quando você for à latrina lá fora de noite, eles estarão bêbados nessa hora e ficam de tocaia esperando você e a agarram à força, não adianta argumentar com eles e, se você puder, deve dar um chute entre as pernas deles, que é onde realmente dói; por isso é sempre melhor trancar a porta e usar o penico.” (Vulgo Grace, p. 185)
Porém como nada na vida de Grace é fácil ou tampouco feliz por muito tempo, Mary acaba morrendo e levando consigo toda sua felicidade. A morte de sua mãe juntamente com a de sua amiga Mary Whitney lhe marcam profundamente. A cena de Mary morta ao seu lado na cama enquanto dormia é forte e fica impressa na mente volúvel de Grace.
“Ela estava com muitas dores e à noite eu esquentei um tijolo e levei para cina; mas ela não me deixou chamar ninguém. Eu disse que dormiria no chão, para ela ficar mais confortável; ela disse que eu era a melhor amiga que já tivera e que, fosse como fosse, jamais me esqueceria. Enrolei-me no meu xale, com meu avental como travesseiro, e me deitei no chão, que era muito duro, e com isto, e com os gemidos agoniados de Mary, no começo não consegui dormir. Depois de algum tempo, tudo ficou mais silencioso e eu adormeci, só despertando ao amanhecer. E, quando acordei, lá estava Mary, morta na cama, com os olhos abertos, olhando pro vazio.” (Vulgo Grace, p. 198)
Grace acaba descrevendo toda sua vida desde que deixou sua terra natal na Irlanda ao Dr. Simon Jordan e tenta lhe contar os retalhos das memórias confusas e nebulosas que tem sobre o período sombrio de sua vida. Jordan, em dúvida sobre a possível veracidade de seu depoimento, procura cético ajuda de terceiros, médicos renomados que já haviam tratado do caso de Grace, e todos afirmam que ela não passa de uma mentirosa, que está se aproveitando da chance que várias pessoas influentes da sociedade da época lhe deram ao acreditar na sua inocência.
A dúvida se Grace é assassina ou não fica rondando-nos durante toda a narrativa e o que me decepcionou um pouco neste livro foi exatamente terminar de lê-lo e não ter algo palpável em que acreditar. Se ela é inocente ou não, isso fica em aberto. O mistério não se dissolve, ele permanece até a última página do romance.

Jordan acaba se revelando um lunático, que alucina por diversas vezes Grace consigo. Ele se envolve com a senhoria que lhe aluga um quarto em sua estadia no Canadá e num ímpeto avassalador, foge dali, quando percebe que a senhora está se agarrando a ele como uma âncora. Ele não sabe como fará para prestar contas ao grupo de pessoas influentes que esperam dele um relatório determinando a inocência de Grace, porque fica numa eterna dúvida sobre o que Grace é.
Passam-se anos e quando Grace está quase completando trinta anos de prisão, a absolvem de sua pena e a levam para Nova York, onde enfim poderá viver uma vida, livre do preconceito e do reconhecimento das pessoas ao seu redor.
Eu já tinha lido O Conto da Aia e fui com muitas expectativas nesse livro, confesso que me decepcionei um pouco no desfecho da narrativa, mas isso não me fez desgostar do livro, muito pelo contrário. O que eu mais admiro na Margaret Atwood é a forma como ela constrói seus personagens, em especial as personagens femininas, que possuem enorme peso e importância em suas narrativas.
Claro que há uma diferença enorme entre sua Aia e Grace, se fôssemos compará-las, mas não poderia fazer algo do tipo, já que são gêneros totalmente distintos de narrativa. Temos na Grace toda a inocência, o frescor, a ingenuidade de uma garota que cresceu precocemente por necessidade. Há muita humanidade, muita realidade em ambas as personagens. Não se dramatiza, nem se teatraliza com suas histórias. Não é porque são mulheres, que vão ser fracas, como historicamente elas são rotuladas. O que vemos em suas personagens é força.

Uma das citações que mais me chocou durante a leitura foi a de Grace, uma vítima, mesmo que isso fique em dúvida falar sobre a culpabilização da vítima, hoje tão amplamente discutida nas mídias e na sociedade em geral. É tão enraizado e profundo o pensamento de que a vítima é a culpada por aquilo que lhe aconteceu, que vemos a dita vítima – Grace – reproduzindo o mesmo discurso que engendra e culpa a vítima.
“Não são os culpados que precisam ser perdoados; na verdade, são as vítimas, porque são elas que provocam toda a confusão. Se ao menos fossem menos fracas e descuidadas e mais prevenidas, se deixassem de ficar se metendo em dificuldades, pense em toda a tristeza do mundo que seria poupada.” (Vulgo Grace, p. 502)
Definitivamente vou ler os demais romances já lançados por Margaret Atwood. Encontro-me muito apaixonada por tudo que ela escreve e faz.
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