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Resenha | O Conto da Aia (The Handmaid's Tale), de Margaret Atwood.

Atualizado: 22 de abr. de 2018


Ficha Técnica

Título: O Conto da Aia (The Handmaid's Tale)

Autor(a): Margaret Atwood.

Edição: 2017

Ano de publicação: 1985

Páginas: 366.

Editora: Rocco Ltda.


Meses atrás eu fiz uma compra na Saraiva de uns livros para estudar para minha monografia. Todos eles eram científicos, todos eles tinham alguma coisa que abordasse a posição da mulher e tudo mais. Bom, O Conto da Aia foi o único livro de ficção que eu peguei. É louco dizer ficção porque essa história tem traços reais. A forma como a mulher é tratada: ela perde o direito de poder trabalhar, perde o direito de ter uma conta bancária. A mulher mais uma vez volta para ser a sombra do homem. Seus bens vão automaticamente para o marido. Dão um golpe de Estado, explodem a Casa Branca, rasgam a constituição e instauram a República de Gilead. Nela, existem as Aias, que nada mais são do que servas. Por causa do desmatamento, do lixo tóxico, da radiação nuclear, da poluição da água e do ar, as mulheres são inférteis. O dever de uma Aia nada mais é que "ceder" seu corpo, sua barriga, para o Comandante e sua esposa infértil. Há vários trechos e referências do Antigo Testamento da Bíblia, que vai dizer que Bila, cede a barriga para que Raquel e Jacob tenham filhos.


"Vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: Dá-me filhos, se não morro. Então se acendeu a ira de Jacó contra Raquel, e disse: Estou eu no lugar de Deus, que te impediu o fruto de teu ventre? E ela disse: Eis aqui minha serva Bila; coabita com ela, para que dê à luz sobre meus joelhos, e eu assim receba filhos por ela. Assim lhe deu a Bila, sua serva, por mulher; e Jacó a possuiu. E concebeu Bila, e deu a Jacó um filho." (Gênesis, cap. 30; v. 1-5)



"Foi depois da catástrofe, quando mataram a tiros o presidente e metralharam o Congresso, e o exército declarou um estado de emergência. Na época, atribuíram a culpa aos fanáticos islâmicos. Mantenham a calma, diziam na televisão. Tudo está sob controle. Fiquei atordoada. Todo mundo ficou, sei disso. Era difícil de acreditar. O governo inteiro massacrado daquela maneira. Como conseguiram entrar, como isso aconteceu? Foi então que suspenderam a Constituição. Disseram que seria temporário. Não houve sequer nenhum tumulto nas ruas. As pessoas ficavam em casa à noite, assistindo televisão, em busca de alguma direção. Não havia nem um inimigo que se pudesse identificar." (Atwood, 2017, p. 208)

A história é sob o ponto de vista da Aia intitulada por Offred, vejam bem aqui, esse "Off" significa "de" e o seguinte é o nome do Comandante. Of Fred. De Fred.

A Aia é um receptáculo. Offred está servindo pela segunda vez.

Nessa sociedade distópica, existem castas que separam as mulheres. Existem as Esposas, as Econoesposas - que nada mais são do que Esposas só que de classes mais baixas -, as Marthas - que são mulheres inférteis que cuidam do lar de cada Esposa -, as Aias - que como já expliquei anteriormente, são as servas leais de cada Esposa - e as Não-mulheres que nada mais são do que a poeira de todo esse arquétipo de castas e posições. Aqui se concentram as homossexuais, as rebeldes. Elas vivem em condições sub-humanas e em áreas onde o teor radioativo é muito forte. E esse é o destino da amiga de Offred, Moira. Há muitas passagens sobre a amizade das duas no livro. Elas se encontram nas aulas "educativas" que mais são lavagem cerebral, porém Moira tem um espírito rebelde, livre. Ela logo foge dali e passa a viver por si mesma em lugares clandestinos.


"A Esposa do Comandante entra apressada, com sua ridícula camisola branca, as pernas magrelas saindo de baixo dela. Duas das Esposas em seus vestidos e véus azuis seguram-na pelos braços, como se precisasse disso; ela tem no rosto um pequeno sorriso forçado, como uma anfitriã numa festa que preferiria não estar dando. Deve saber o que pensamos a seu respeito. Ela sobe rápido no Banco de Dar à Luz, senta-se no assento atrás e acima de Janine, de modo que Janine fica emoldurada por ela: as pernas magras descem pelos dois lados, como os braços de uma cadeira excêntrica. De maneira bastante estranha ela está de meias brancas de algodão, e pantufas, azuis, feitas de material felpudo, como capas de assento de toaletes. Mas não prestamos nenhuma atenção na Esposa, mal a vemos, nossos olhos estão em Janine. Sob a luz fraca, em sua combinação branca, ela brilha como uma lua envolta em nuvem."(Atwood, 2017, p. 153).

A narração em primeira pessoa e os flashbacks que Offred tem do passado se entremeiam e formam uma narrativa depressiva, tristonha. Este, meus amigos, se trata de um livro forte. Impactante. Ele te faz pensar na forma em que foi formada o mundo.

Lendo esse livro, eu senti um incômodo contínuo. Offred sofre em silêncio dentro das quatro paredes solitárias de seu quarto que nada mais tem que uma cama e um armário, uma janela com vidro inquebrável. O lustre que havia foi tirado depois que a Aia anterior se enforcou com o lençol pendurada no lustre.

Offred sofre pensando em como estará sua filha e seu marido.


"Demo-lhes mais do que tiramos, disse o Comandante. Pense nas dificuldades que tinham antes. Não se lembra dos bares de solteiros, a indignidade dos encontros às cegas no colégio? O mercado da carne. Não se lembra do terrível abismo entre as que podiam conseguir um homem com facilidade e as que não podiam? Algumas delas ficavam desesperadas, passavam fome para ficar magras, enchiam os seios de silicone mandavam cortar pedaços do nariz. Pense na infelicidade humana." (Atwood, 2017, p. 260)



"Ele abana a mão na direção de sua pilha de revistas antigas. Estavam sempre reclamando. Problemas disso, problemas daquilo. Lembra-se dos anúncios nas Colunas Pessoais, Mulher inteligente e atraente, trinta e cinco anos... Da maneira como fazemos, todas elas conseguem um homem, ninguém é excluído. E depois, então, se de fato se casassem, podiam ser abandonadas com uma criança, duas crianças, o marido podia simplesmente achar que estava farto e largá-las, desaparecer, elas tinham que viver às custas dos serviços sociais do governo. Ou então o marido ficava por lá e batia nelas. Ou se tivessem emprego, as crianças ficavam em creches ou eram deixadas aos cuidados de alguma mulher brutal e ignorante, e tinham que pagar por isso elas próprias, com seus salariozinhos miseráveis. O dinheiro era a única medida de valor, para todo mundo, não recebiam nenhum respeito pelo fato de serem mães. Não é de se espantar que estivessem desistindo da coisa inteira. Da maneira como fazemos estão protegidas, podem realizar seus destinos biológicos em paz. Com pleno apoio e encorajamento." (Atwood, 2017, p. 261)

A cena mais impactante é a da noite onde a esposa infértil sentada tem sua Aia servindo de receptáculo para receber do Comandante o sêmen para engravidar. O ato sexual em si só era feito para fins de procriação.

O Conto da Aia te faz repensar o mundo. Em como nós lidamos com a natureza ao nosso redor. E é chocante quando você ver traços dessa distopia na realidade.


"Por vezes a fita que ela exibia era um velho filme pornográfico dos anos 1970 ou 1980. Mulheres ajoelhadas chupando pênis ou armas, mulheres amarradas ou com coleiras de cachorro ao redor do pescoço, mulheres penduradas em árvores ou de cabeça para baixo, nuas, com as pernas mantidas abertas, mulheres sendo estupradas surradas, mortas. Uma vez tivemos que assistir a um, em que uma mulher era lentamente cortada em pedaços, os dedos e os seios retalhados com podadeiras de jardim, o estômago fendido aberto e os intestinos puxados para fora. (Atwood, 2017, p. 145)

Porque por exemplo, as mulheres no Oriente Médio, têm pouquíssimos direitos. Ela está relegada ao marido, ao pai ou a algum parente masculino. Ela tem que andar de burca, com hijab, mostrando somente os olhos.

E é aí que você percebe que essa distopia que mata e extirpa qualquer tipo de liberdade à mulher, na verdade, nada mais é que uma realidade onde muitas mulheres vivem.


"Para as gerações que vierem depois, dizia Tia Lydia, será tão melhor. As mulheres viverão juntas em harmonia, todas numa única família; vocês serão como folhas para elas, e quando o nível da população voltar a subir de acordo com as expectativas, não precisaremos transferir vocês de uma casa para outra porque haverá mulheres suficientes. Poderão existir verdadeiros laços de afeto, dizia ela, piscando para nós de maneira insinuante, sob condições como essas. Mulheres unidas para um fim comum! Ajudar umas às outras em suas tarefas cotidianas enquanto percorrem o caminho da vida juntas, cada uma desempenhando sua tarefa determinada. Por que esperar que uma mulher desempenhe todas as funções necessárias à administração serena de um lar? Não é razoável nem humano. Suas filhas terão maior liberdade. Estamos trabalhando para atingir a meta de um pequeno jardim para cada uma, cada uma de vocês - as mãos unidas com os dedos cruzados de novo, a voz suspirante -, e essa é apenas uma, por exemplo. O dedo levantado, balançando para nós. Mas não podemos ser porcos esganados e exigir demais antes que esteja pronto, não é mesmo?" (Atwood, 2017, p. 195).

Eu já tenho uma boa bagagem de distopias lidas, e confesso para vocês que não criei expectativa alguma sobre O Conto da Aia. Claro que a medida que ia lendo e conhecendo essa sociedade ia ficando cada vez mais perplexa e temerosa.


Distopias têm uma função muito importante, nos alertar do mundo em que vivemos.

É horroroso, assustador tudo que você lê em Laranja Mecânica, Admirável Mundo Novo, 1984, Fahrenheit 451, porém todas elas possuem e carregam traços reais de nosso mundo contemporâneo. Seria muito fácil se fosse totalmente ficção, não?


De todas as distopias a que eu mais fiquei assustada foram 1984 e Admirável Mundo Novo pela brutalidade em cada página que lia, porém, O Conto da Aia foi além. Durante a leitura desse livro, eu me sentia nauseada, por vezes era forte demais. A forma como eles aprisionam a mulher, a forma como moldam a sociedade é horripilante. Nem um filme de terror me assustaria mais do que este livro.


Este livro foi publicado em 1985, época onde as mulheres estavam aparecendo nas televisões e meios de comunicação pedindo por mais igualdade e justiça para com seu gênero.


Narrativas como essa que por vezes se entrelaçam a nossa realidade nos servem como alerta, como referência, como um lembrete diário e claro do que pode - e se brincar, já está acontecendo - se nós esmorecermos ao menos um pouco.


Eu agradeço pela ilustre Margaret Atwood por nos assustar com sua história alarmante, diante desta obra a consciência fica alerta. A função de abrir os olhos de cada mulher foi feita com sucesso.


Nolite te bastardes carborundorum



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