Conto | At Last
- Isabela Lima
- 7 de jun. de 2018
- 16 min de leitura
Dedicatória: Esse conto surgiu em minha cabeça enquanto ouvia At Last de Etta James. A tradução da música me impulsionou a escrevê-lo e dedicá-lo a uma pessoa especial em minha vida. Ela tem sido minha luz no fim do túnel, minha alegria na tristeza. Ela é tão importante para mim que se tornou o motivo principal de ainda estar aqui e você sabe bem o que estou falando, meu bem. Como comemoração de nosso aniversário, deixo esse conto para você. E como te disse, se encontrar alguma semelhança não é uma mera coincidência.
Aviso legal
Os personagens encontrados nesta história são apenas alusões a pessoas reais e nenhuma das situações e personalidades aqui encontradas refletem a realidade, tratando-se esta obra, de uma ficção. Os eventuais personagens originais desta história são de minha propriedade intelectual. História sem fins lucrativos, feita apenas de fã para fã sem o objetivo de denegrir ou violar as imagens dos artistas.
Play: At Last - Etta James
Eu não pensei o que aconteceria depois daquilo. Não pensei o que seria de mim e o que faria após ter pego a tesoura quase cega, porém pontiaguda da minha avó que falecera, para cortar grandes talhos nos meus braços. Vendo todo aquele sangue escorrer de meus braços, só me senti ainda mais triste. Uma solidão sem fim me abateu. Pensara que mataria minha dor com aqueles rasgos grosseiros em minha pele, porém agora eu via em meio a dor e ao meu próprio sangue que eu me metera em ainda mais dor para tentar sair da mesma.
Tentei me levantar, porém escorreguei sobre o líquido grosso e viscoso de meu sangue. Meus braços latejavam, como se tivessem criado vida ou voz para gritar toda sua dor. Alcancei meu celular em cima da cama, sujando o lençol no processo e liguei para uma conhecida.
Nós tínhamos um toque, se eu ligasse e caísse na caixa postal era um sinal de que eu tentaria algo contra mim mesma. A porta do meu quarto se encontrava entreaberta, tinha colocado Back to Black para ouvir enquanto fazia aquilo. Eu só conseguia agora tentar estancar e fazer parar todo aquele sangramento violento dos meus braços com minhas mãos.
Encostei minha cabeça na beira da minha cama e suspirei cansada. Dizem que depois de fazer algo do tipo, devido ao sangramento, você se sente cansado e lhe bate uma sonolência. Quando percebi que estava tonta e que todo o quarto estava rodando tentei gritar por socorro, mas quem escutaria?
Minha mãe estava imersa em seus problemas e em sua tentativa de viver depois do divórcio traumático com o meu pai. Este nem sequer aparece para dizer um Olá aos filhos que deixou. Desvairado deixou a família delirando de amores pela secretária, quão clichê isso é?
Você pode pensar que fiz isso, por causa dos pais complicados que possuo, talvez seja um pouco, mas não era de todo. Eu tinha um emprego dos sonhos, formada em Estudos de Gênero e Diversidade, era pesquisadora em uma editora, escrevia artigos para jornais famosos e conceituados. Já tinha escrito três livros e estava no processo de começar um outro, quando mais uma crise me assolou. Mesmo que fosse o emprego dos meus sonhos, mesmo que tudo aquilo que fazia fosse com amor, eu não via sentido para a minha vida. Por mais clichê que possa parecer, eu sobrevivia.
Estava passando uns dias na casa da minha mãe para tentar não deixa-la sozinha em sua solidão. Mas nem eu, nem muito menos ela queria conversar sobre tudo aquilo que estávamos passando. De natureza fechada, eu e minha mãe aprendemos a guardar nosso sofrimento em sete chaves. Sofrer não era glamoroso, minha avó dizia.
Quando senti minhas pálpebras pesarem demais, deixei-me ir. A inconsciência me abraçou serenamente, me anestesiando das dores físicas e psicológicas que sentia.
xxx
A consciência veio como um baque, assim que acordei e abri lentamente meus olhos. Vi a figura da minha mãe sentada, distraída com um de seus romances ao fundo do quarto. Uma janela se encontrava aberta e trazia um certo frescor para dentro do ambiente do quarto hospitalar.
Voltei meus olhos para meus braços que estavam apoiados em minha barriga. Eles estavam devidamente enfaixados e toda a dor proveniente deles desaparecera com o intermédio abençoado dos analgésicos que devem ter me administrado.
Ouvi minha mãe grunhir e percebi quando ela se levantou, ainda com o livro nas mãos e se aproximou um pouco de meu leito. Eu não levantei o olhar para vê-la, não a queria ali, me vendo naquele estado. Me sentia completamente constrangida e embaraçada, mas eu sabia que ela não deixaria passar.
- Seu pai não virá, está ocupado com a nova família que tem agora. – Ela começou e se encostou no meu leito. – Eu não sei o que lhe deu para fazer isso, mas é bom se recompor. Tem uma dúzia de repórteres na recepção do hospital, todos loucos e famintos para saber o motivo de sua tentativa de suicídio.
A porta de meu quarto rangeu e entrou por ela a conhecida que me salvara a vida. Bom, ao menos foi para ela que liguei. Sua mãe ao perceber a presença da outra mulher, pegou suas coisas e saiu do quarto depois de lhe dar uma boa olhada e um carão.
- Sua mãe não é fácil, hein? – Ela começou em retórica à saída dramática de minha mãe e eu sorri fraco.
- Quando ela for, me avise, aí sim será um milagre anunciado pelos céus. – Respondi-lhe.
Ela se aproximou de meu leito e deixou sua mão cobrir as minhas que estavam juntas em cima de minha barriga. Ela as apertou em sinal de conforto e afeto.
- Desculpe se a assustei com todo o espetáculo. – Soltei um suspiro baixo, não a queria me vendo daquele jeito, mas dentre todos, ela era a única que parecia entender um pouco do que eu estava passando.
- Você não precisa agradecer, não por isso. – Com sua outra mão, afagou minha bochecha, olhando-me carinhosamente. – Claro que fiquei preocupada, aterrorizada de não conseguir chegar a tempo, mas estamos aqui. Você está a salvo.
Balancei a cabeça em negativa, deixando lágrimas finas escorrerem pelo meu rosto. Ela se aproximou ainda mais e encostou minha cabeça no seu peito, acariciando meus cabelos.
- Eu não disse que nunca sairia do seu lado? Bem, estou cumprindo com a minha palavra. – Ela falou num tom baixo e moderado.
- Eu não mereço tudo isso. – Disse-lhe com a voz embargada.
- Mas é claro que merece. Não ouse me contestar. – Ela rebateu firme.
- Camila...
Chamei-lhe e ela olhou-me nos olhos. Ali estava nossa conexão, a mesma que tivemos assim que nos vimos. Eu nunca iria esquecer daquele dia que parecia tão normal, sem nenhum sinal de que a conheceria naquele dia.
Flashback
Comic Con 2017
Eu era péssima em lidar com público, mas quase sempre meu trabalho me impunha esses sacrifícios. Estava numa bancada diante de um público de mais ou menos 200 convidados pré selecionados entre grande imprensa e alguns convidados especiais que trabalhavam com aquele universo.
Aquela roda era sobre discussão de gênero no cenário dos games. Eu não entendia bulhufas de games, jogos, nem nada, mas havia estudado um pouco para a apresentação sobre personagens femininas empoderadas que apareciam nesses jogos. Eu estava ali para isso, como acadêmica e dominadora do assunto, eles me colocaram no centro da bancada. Atrás da bancada, havia um telão onde passava diversos personagens de jogos.
Tomei um gole de água depois de falar um pouco sobre o gênero em si para aí sim focar no gênero nos jogos. Alguns repórteres levantavam a mão e me questionavam sobre algumas coisas à medida que eu falava e aí surgiu essa mulher.
Cabelos castanhos escuros que ia muito abaixo dos ombros, pele morena, definitivamente era de ascendência latina, os olhos num tom achocolatado, a boca carnuda e cheia.
De pé, ela levantou a mão e chamou minha atenção, pedindo para ser atendida. Eu a indiquei ainda estática com sua presença. Ela segurava algumas folhas de papel, o que parecia um roteiro e voltou a olhar para mim.
- Camila Cabello, designer de games. Já a acompanhei em diversas conferências e já li diversos artigos sobre o modo como fala de gênero. Poderia nos falar um pouco sobre o gênero num contexto geral e a influência que um assunto como esse esteja em evidência nas grandes mídias atualmente? – Ela questionou e eu sorri, antes de responder.
- Fico feliz que acompanhe meu trabalho. – Dei uma pequena pausa para respirar e continuei. – Vou explicar para vocês de uma forma bastante didática já que esse assunto é um tanto quanto complexo: o sexo é uma categoria tomada em seu gênero. Costumam dizer que o gênero é a interpretação cultural do sexo, porém ele não deve ser meramente concebido como inscrição cultural de significado num sexo previamente dado; ele também tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. O gênero é o meio discursivo/cultural pelo qual "a natureza sexuada" ou "um sexo natural" é produzido e estabelecido.
Simone de Beauvoir em O segundo sexo vai dizer que "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher". Para ela, o gênero é construído. Há muitas controvérsias acerca do significado de construção, porque nos limites desses termos, o corpo aparece como um meio passivo sobre o qual se inscrevem significados culturais, ou então como o instrumento pelo qual uma vontade de apropriação ou interpretação determina o significado cultural por si mesma. (BUTLER, 2017)
Percebem o quão complexo o assunto gênero se trata? Por isso que é necessária a discussão e a visibilidade que esse assunto está tomando nas grandes mídias atualmente, porque quanto mais se falar sobre o assunto, mais se pesquisará sobre e mais se saberá. Claro que muitas vezes a discussão de gênero gera estardalhaço na sociedade, mas quando colocamos isso em pauta em rede nacional estamos dando a chance de ignorantes e preconceituosos poderem conhecer mais sobre aquilo que tanto execram.
Respondi-lhe por fim, terminando meu discurso e recebendo uma salva de palmas dos convidados. O produtor sinalizou avisando que era um dos intervalos e me levantei da bancada, porém enquanto saía do palco não conseguia tirar meus olhos da designer de games. Camila Cabello. Talvez eu só estivesse extasiada com o reconhecimento de meu trabalho, mas algo dentro de mim disse que não.
Já no corredor repleto de camarins e uma sala com sofás e pufs bem confortáveis para descansarmos, assim como mesas que tinham de canapés a lanches rápidos. Quando tomei um pequeno gole do suco de morango com hortelã que havia pegado numa bandeja, ouvi meu nome ser chamado.
- Lauren Jauregui. – Ou eu estava sonhando ou estava ouvindo vozes. Quando me virei me deparei com a designer de games. Meu espanto foi tanto que me encostei na bancada onde haviam bandejas com diversas opções de sucos.
- Olá você. – Cumprimentei-lhe, ela sorriu de lado, olhando-me. – Sua pergunta foi muito boa.
- Ah, não sei como aqueles repórteres estudaram sobre a pauta, mas não há como uma pergunta não ser boa quando o assunto é gênero.
- Você é bastante interessada no tema, pelo visto. – Observei, tomando mais um gole do suco.
- Sim, tenho que ser, quer dizer, todos nós deveríamos estar interessados no que diz respeito a nós mesmos, não? – Ela perguntou retoricamente, me lançando um sorriso enviesado.
- Concordo, mas acontece de encontrarmos criaturas ignorantes que não sabem o que o poder do conhecimento pode nos presentear.
Ela me analisava com olhos de águia, não diria que era intimidante, mas fiquei um pouco constrangida, afinal nunca fui objeto de atenção de ninguém, nem por parte de repórteres e imprensa no geral.
- Você é de Londres, não? – Ela perguntou, curiosa sobre minha nacionalidade.
- Sim, acredito que deve ter notado meu sotaque galante. – Falei brincalhona.
- Ah, não tem como não perceber. O charme britânico é inconfundível. – Ela rebateu com um flerte.
Pera, ela estava flertando comigo? Como fomos de uma discussão séria sobre gênero para flertes?
- E você de onde é? – Respondi-lhe com uma pergunta, tentando anular o flerte que me dera. Na verdade, eu só estava fazendo a egípcia mesmo. (N/A: Convenhamos, Lauren é rainha na arte de fazer a egípcia.)
- Sou de Cuba, já vivi algum tempo aqui nos Estados Unidos, mas já faz alguns anos que fixei residência em Londres.
- Sabia que era latina. Seu tom de pele é incrível. – Pensei alto e me xinguei internamente. Ouvi sua risada baixa ressoar entre nós e bufei baixo. – Mil desculpas, não queria ter dito isso.
- Ora, Lauren, nós sabemos que seu comentário foi sincero. Gosto de sinceridade. Gostei de você. – Ela disse-me sem nenhuma alteração na voz, o que denotava até mesmo calma e tranquilidade diante daquela situação, o que não era o meu caso. Ela tirou um cartão do bolso traseiro de sua calça, pegou uma de minhas mãos e o colocou dentro da minha mão.
- Acho que seria maravilhoso se você nos desse uma chance de nos conhecermos melhor. – Ela finalizou, sorrindo. Antes de ir embora, falou: - Vou esperar por sua mensagem. – Ela acenou e caminhou para fora do recinto.
Fim do Flashback
Depois daquele dia, nós nunca mais perdemos contato. Fazia pouco mais de um ano que nos conhecíamos. E eu a apelidava de conhecida por causa de uma brincadeira interna entre nós duas.
De lá para cá nós só fomos estreitando ainda mais nosso laço, porém depois de uns amassos após nosso primeiro encontro em um pub britânico, amedrontada, ela me garantiu que por ela tudo bem nos concentrarmos numa amizade por agora, mas isso não impedia que de vez em quando, nós acabássemos rompendo esse trato e ficássemos aos beijos.
Ao longo dos meses ela entrou na minha vida de uma forma tão drástica que até mesmo meus parcos amigos próximos e colegas de trabalho estranharam, afinal eu era conhecida pela minha postura impessoal, fechada e séria. Diante dos comentários, eu simplesmente os ignorei, afinal não eram eles que pagavam minhas contas. Isso só devia somente ao meu respeito e ao dela. Claro que tinha uns engraçadinhos que se metiam a besta e faziam-me perguntas pessoais sobre nosso relacionamento e eu fiz questão de deixar meu carão prevalecer até eles se intimidarem e desistirem.
Ela foi praticamente invadindo, descobrindo a concha em que eu era e claro ainda sou. Meses com ela me tornaram uma pessoa um pouco mais aberta e receptiva e dar-me conta disso era assustador, porque ninguém havia feito isso antes. Por isso não foi difícil ela descobrir sobre os meus problemas internos.
Fazia quase um mês que nos falávamos, toda semana tínhamos encontros. Criamos esse hábito de sempre estarmos juntas e quando estávamos atoladas de trabalho, as chamadas de vídeo por whatsapp e google duo serviram ao seu propósito.
E nesse ínterim estava muito atarefada com uma palestra que ia dar no Eton College sobre Depressão e a influência midiática e social entre os jovens adolescentes diante da série do Netflix 13 Reasons Why.
E bom, ela sempre acabava sabendo tudo que eu fazia, até porque estávamos sempre em contato uma com a outra. Então ela ficou sabendo que eu iria fazer essa palestra e começamos a conversar sobre. Quando vi já estava lhe falando sobre todo meu histórico, que tinha crises esporádicas e que se estava bem naquele momento era devido aos remédios que tomava e as constantes sessões de terapia que tinha durante a semana.
A partir disso, ela foi se aproximando mais. Tinha dias que acampava no meu apartamento e só saía quando íamos trabalhar. Por isso que eu tinha telefonado para ela, porque eu sabia que dentre todos, ela seria a única a me ouvir.
Eu tenho 32 anos e desde os 15 recebi o diagnóstico de depressão. De lá pra cá, o que mudou foi devido ao efeito dos medicamentos que o psiquiatra me receitava. Eu era bem sucedida, tinha a vida que queria, mas ainda assim alguma coisa me faltava e não sabia dizer o que era, só sabia que faltava, como um vazio profundo no meu peito.
Tinha algumas semanas que eram extremamente difíceis para mim, porque meu humor tendia a volatilidade. Quando eu acordava estava bem, meia hora depois, já estava irritada, aparentemente sem motivo algum, depois ficava muito brava, do tipo agressiva, que descontava nos objetos que visse pela frente para tentar amainar a frustração que sentia internamente. Outras vezes eu me acalmava sem mais nem menos e aí pra melancolia.
Por diversas vezes tentei afastar Camila da minha vida, mas ela era tão teimosa. Tinha medo de machuca-la, de trata-la mal quando estivesse naquele estado. E o pior de tudo eu já a tratei mal muitas vezes, mas ela insiste em ficar.
Dias depois
Quando me acordei e cambaleei pelo meu quarto até o banheiro para fazer minha higiene matinal vislumbrei várias malas pelo corredor, mas pensei que tivesse alucinando e decidi escovar meus dentes e lavar meu rosto com água fria para ver se eu continuaria visualizando aquilo. Mas quando voltei qual não foi minha surpresa ao me deparar com as mesmas malas que tinha visto anteriormente, só que agora vi Camila colocando mais uma maleta sobre todas as outras.
Eu a olhei interrogativamente e ela emitiu uma risadinha diante de minha reação.
- Você ouviu o que o médico que lhe deu alta lhe recomendou? – Ela perguntou e eu disse que não. Afinal só queria sair logo daquele hospital e de toda aquela atenção indesejada. – Pois então, ele disse que seria aconselhável se tivesse alguém com você.
Ela se aproximou e colocou as duas mãos sobre meu rosto, afagando-o e me enchendo de beijos delicados sobre o mesmo.
- Como assim alguém comigo? – Perguntei, um pouco inebriada com toda a atenção que ela me dirigia.
- Ele supôs que você morava sozinha e disse que seria bom se alguém fosse morar com você apenas para fazer companhia e não deixa-la tão solitária.
Bufei diante de sua resposta e ela continuou me dando beijos com o intuito de me distrair, mas eu estava pensando naquela palhaçada. Sim, palhaçada. Eu não era incapaz para ter que ser supervisionada por outra pessoa, que estaria analisando cada passo e cada coisa que eu fizesse.
- Eu sei o que está pensando e não, não é isso. – Desviei meu olhar do seu e cruzei meus braços, assumindo uma postura defensiva. Ela tomou mais uma vez meu rosto em suas mãos e voltei a olhá-la nos olhos. – Eu não vim morar com você para vigiá-la, eu vim morar com você para te auxiliar, para não te deixar sozinha, Lauren. Não vou ficar fuçando suas coisas, nem te supervisionar igual uma enfermeira. Mas se você quiser eu posso.
- Pode o quê?
- Posso ser sua enfermeira. – Ela sorriu com malícia e eu revirei os olhos. Lá vem.
Depois daquele dia, Camila foi arrumando suas coisas no meu apartamento e as malas que pareciam um grande elefante no meu corredor agora estavam no meu closet, assim como suas roupas que trouxeram um novo aroma as minhas roupas também.
Tive um dia cansativo hoje, meu telefone não parava de tocar por causa de jornalistas que estavam em busca de uma entrevista em que eu falasse sobre o episódio catastrófico ao que eu me impusera. Decidi ignorar e pedi ao meu chefe uns dias para trabalhar em casa diante daquele alvoroço todo. Ele cedeu, mas me pediu juízo.
Estava no banheiro, tentando tirar as gazes do curativo gigantesco que tinha que refazer todos os dias. Era um saco quando as gazes grudavam nas feridas. Camila apareceu atrás de mim repentinamente.
- O que você está fazendo aqui? – Perguntei-lhe, emitindo um suspiro de cansaço.
- Estou tentando te ajudar. Posso? – Ela pediu permissão e antes de assentir, ela já estava com as mãos nos curativos que eu tinha retirado dos meus braços. Jogou fora os curativos sujos na lixeira e com o auxílio de um algodão molhado com álcool foi passando ao redor das gazes que não queriam sair e aos poucos iam se soltando.
Sua delicadeza diante dos meus ferimentos era tamanha que eu passei a observá-la, já que não fazia nada ali mesmo. Me emocionei ao me dar conta que realmente tinha uma pessoa que cuidava de mim, que se importava comigo e que estava ali literalmente cuidando das minhas feridas, mesmo que sejam físicas e me ajudando a superar minhas feridas e cicatrizes invisíveis, essas mais difíceis de curar.
Quando ela borrifou um pouco de antisséptico em cima dos pontos que eu ganhara, grunhi com o ardor repentino que se estabeleceu. Eu tinha recebido doze pontos em cada braço devido aos rasgos impressionantes que eu fizera. Demoraria umas boas semanas para eu me livrar deles.
- Shii... – Ela tentou me distrair, dando-me um beijo no canto da minha boca. – Logo acaba. – Ela falou carinhosa e continuou colocando gazes limpas em cima dos cortes, para logo em seguida cobri-los com uma faixa e mantê-las com pedaços de esparadrapos estéreis.
- Pronto, está entregue. – Ela brincou e sorriu para mim. Eu a encarei com um sorriso amarelo e flexionei com cuidado os braços, levando minhas mãos até seu pescoço.
- Obrigada. Ninguém além de você faria isso por mim. – Agradeci, afagando seu pescoço e nuca com a ponta de meus dedos. Ela tomou minha cintura com suas mãos e instintivamente toquei meus lábios nos seus. Percebi que ela congelou ao toque dos nossos lábios juntos e eu lhe dei a certeza de continuar, quando movi minha boca de encontro a sua, fazendo-a me dar a liberdade para continuar.
Não era nosso primeiro beijo, mas era a primeira vez em que eu tacava o foda-se diante das inúmeras incertezas e inseguranças que carregava dentro de mim. Estava cansada de montar barreiras, de medir cada gesto e ação diante de Camila. Se aquele gesto auto-destrutivo havia me dado de bom foi a noção do quanto ela estava comigo e eu não perderia a chance de tê-la para mim, não quando acabei de assisti-la cuidar das minhas feridas com tanto amor e veneração.
Ela cortou nosso beijo e me encarou intensamente, agora com as mãos no meu rosto. Ela parecia me questionar se era aquilo mesmo que eu queria. Sim, eu a queria.
- Não precisa me agradecer. Eu te disse que estaria aqui para você, não disse? – Ela sussurrou baixo.
- Eu queria te beijar, não como uma forma de agradecimento por está fazendo tudo isso por mim, mas porque eu realmente queria. Camila, você sabe do meu histórico, tantas pessoas já apareceram na minha vida e disseram a mesma coisa e eu tola acreditava. Mas meu ceticismo e minhas desconfianças foram por água abaixo diante do seu cuidado comigo durante esses dias. É você quem eu quero e pode parecer tarde que eu o diga isso, mas eu quero você para mim. Você aceita essa criatura quebrada e retalhada que está a sua frente? – Falei num rompante impulsivo, soltando algumas baforadas de incerteza e dúvida. Eu tinha temor por sua resposta. E se ela dissesse que não afinal?
- Como eu poderia recusar? Como eu poderia dizer não se já disse sim desde o momento em que nos encontramos na Comic-Con? Respeitei suas escolhas e me mantive ao seu lado, porque minha preocupação não era te ter, minha preocupação era cuidar de você, porque eu sabia que não podia te ter naquele momento, não com você tão quebrada e instável. Então eu esperei e enquanto esperava cuidei de você, porque eu te quero bem. Eu te quero tão bem... Não vou cansar enquanto você estiver 100% saudável. Não me importa suas cicatrizes, suas feridas abertas, eu as beijo e as venero se preciso for, porque elas te fazem ser quem é: esse ser forte e incrível por quem me apaixonei intensamente.
Lágrimas gordas correram pelo meu rosto e elas as enxugou dando um beijo em cada lágrima que descia.
- Você é minha, eu sou sua. Nós nos pertencemos e não importa o que aconteça, eu estarei com você.
Diante de suas palavras só pude lembrar daquela música, a mesma que parecia nos descrever. Encostei minha cabeça no seu ombro e me inclinei para cantar baixinho no seu ouvido:
- At last
My love has come along
My lonely days are over
And life is like a song.
- Ohh yeah yeah
At last
The skies above are blue
My heart was wrapped up in clovers
The night I looked at you
Enfim Meu amor chegou Meus dias solitários acabaram E a vida é como uma canção
Ohh sim sim Enfim O céu está azul Meu coração estava coberto de tranquilidade Na noite em que eu olhei pra você
Ela continuou a canção, se balançando lentamente diante do ritmo da música que cantávamos juntas.
- I found a dream, that I could speak to
A dream that I can call my own
I found a thrill to press my cheek to
A thrill that I have never know
Ohh yeah yeah
You smile, you smile
Oh and then the spell was cast
And here we are in heaven
For you are mine at last.
Eu encontrei um sonho, que eu posso contar Um sonho que posso chamar de meu Eu achei um prazer apertar minha bochecha Um prazer que eu nunca havia conhecido
Ohh sim sim Você sorriu, você sorriu Oh, e assim o encanto foi lançado E aqui estamos nós no paraíso Pois você é meu enfim
- Você é o meu enfim, encontrei em você o que não sabia que podia encontrar dentro de mim mesma. Você é a vida eu pensei nunca ter, você agora é toda minha vida, todo meu coração, todo meu amor.
Com a canção At Last de Etta James ressoando por suas mentes, enquanto cantavam baixinho aquela música que tanto lhe descreviam, no meio do banheiro, uma abraçando a outra, em passos desajeitados de uma dança quase inexistente, que elas nem sequer se importavam porque estava enfim dando voz aos seus sentimentos. Estavam enfim em paz nos braços do seu amor
Comentarios