A estarrecedora realidade discriminatória na distopia O Conto da Aia
- Isabela Lima
- 15 de mai. de 2018
- 5 min de leitura

O que mais tememos em distopias não são as narrativas terríveis, nem tampouco os regimes totalitários. O que nos assusta ao extremo é que a realidade contada nessas páginas possam ser um dia pano de fundo para nossa realidade.
Seja em Admirável Mundo Novo de Huxley, 1984 de Orwell, Fahrenheit 451 de Bradbury, Laranja Mecânica de Burgess ou em O Conto da Aia de Atwood, em todos eles há um pano de fundo real. Uma linha tênue e fina que nos entrelaça ao mundo horrendo em que esses autores escreveram em suas narrativas. E é essa realidade, mesmo que mínima, nos é abominadora.
Porque é impossível para nós acreditarmos que no nosso mundo, onde a supremacia tecnológica nos enche os olhos, onde o contato não mais é tete-a-tete, onde se pensa que evoluímos muito do que em décadas atrás, que um regime totalitário sanguinário e segregador exista entre nós. Mas infelizmente, em pleno século XXI, é possível encontrar regimes ditatoriais ao redor do mundo, como na Síria, por exemplo. O regime de Assad dura mais de 50 anos e é um dos motivos da guerra civil que eclipsou na Síria.

Além da Síria, temos o regime opressor de Kim Jong-un que com sua “ditadura hereditária” passou de pai para filho a liderança da Coreia do Norte. A China com seu governo autoritário, que mescla socialismo e comunismo e priva a população à internet, a liberdade de imprensa e a liberdade de reunião. Temos a Arábia Saudita, uma monarquia absoluta teocrática, que não possui uma Constituição própria, sendo esta totalmente seguida pelo Alcorão e a Sunnah (as tradições de Maomé) são declaradas como a Constituição do país. É o único país árabe onde nunca houve eleições nacionais, desde sua criação. Partidos políticos ou eleições nacionais são proibidas. De acordo com o The Economist, o governo saudita era o sétimo regime mais autoritário do mundo.
Assim como na República de Gilead há um constante desrespeito aos direitos humanos, a posição inferior da mulher na sociedade, a discriminação religiosa e a falta de liberdade religiosa e política. Vê como a distopia de O Conto da Aia se aproxima da realidade? Até pouco tempo atrás, as mulheres sauditas mal podiam dirigir, e elas só podem dirigir, se o marido ou parente masculino lhe autorizar.
Existe uma constante discriminação, uma constante repressão contra a mulher. Sem poder de voz, ela se cobre dos pés a cabeça para não ser vista, para ser o que um regime lhe imprime: invisível.
No Conto da Aia se sobressai o patriarcado e um regime teocrático que se baseia no Antigo Testamento da Bíblia. Onde a mulher é descrita como inferior, como alguém que precisa sempre estar à sombra ou sob a proteção de um homem e que ela foi feita exclusivamente para servir e distrair o homem, o chefe da família, o Comandante de cada lar em O Conto da Aia.
A figura da mulher nesse regime segregatório é totalmente desfragmentada. A mulher perde todos seus direitos, desde os mais essenciais até os mínimos. A mulher se torna praticamente ninguém. Torna-se alguém totalmente dependente de uma figura masculina para viver, já que toda a sociedade foi montada sob os princípios de um patriarcado que reprime qualquer independência da mulher.

Perde o direito de possuir conta bancária, todos os seus bens vão para a conta de seu marido/companheiro ou para um parente masculino mais próximo, perde o direito de trabalhar e é facilmente reduzida ao ato de procriar. Torna-se um útero ambulante, que constantemente é passada de lar em lar para ser estuprada passivamente por seu Comandante e sendo assistida pela Esposa infértil.
A Cerimônia como é chamado o acontecimento onde o Comandante estupra a Aia, que é assistida pela Esposa Infértil é uma alusão a total falta de empatia, a perda total dos direitos reprodutivos da mulher, a perda da liberdade de escolha, a perda da libido, não somente a sexual, mas todo e qualquer desejo que se possa ter.

Homossexuais, transgêneros são traidores de gêneros não tem vez nessa distopia são exterminados e isolados numa área radioativa, onde sobrevivem em meio ao lixo radioativo. São relegados ao esquecimento.
Se o livro é cruel, a versão em série feita pelo serviço de streaming Hulu é impactante ao ponto de você não conseguir assistir a temporada em maratonas, porque os episódios são densos o suficiente para que você fique remoendo seu conteúdo por dias a fio. Foi tão pesado para mim que deixei de assistir a série no terceiro ou quarto episódio, apesar da série ser muito bem feita, com ricos detalhes foi exatamente por isso que eu parei de assisti-la. É preciso ter sangue frio para não somente ler a distopia assim como a série.
O Conto da Aia nos alerta contra o autoritarismo imposto por regimes totalitários, assim como a fé inabalável nas Escrituras Sagradas, no caso da distopia, a Bíblia, mas no mundo afora, como na Arábia Saudita, como citei acima, o Alcorão.
Na República de Gilead, é proibido ler ou ter qualquer outro tipo de conhecimento. As Aias ficam restritas a pequenos passes com figuras que ilustram o que vão comprar quando saem de casa. Assim também é as fachadas dos estabelecimentos, que fazem de tudo pra que não aja o menor esforço para que ninguém tenha uma leitura mais profunda. Tudo é superficial, assim como a fachada da “Pães e Peixes” com um símbolo gráfico que o representa.

Arrancado o poder de ler e de ter conhecimento, a ignorância se dissemina e vai fazendo as pessoas que estão reféns desse regime a esquecer de como era antes de tudo aquilo acontecer.
Para as crianças que crescem nesse regime é comum não ler, não buscar conhecimento. Resignar-se. Porque elas nasceram nisso, foram ensinadas e vivem naquele meio, sem saber como era antes de tudo aquilo.
Atwood nos mostra o que uma sociedade cega por uma religião se torna. Você já viu o quão cegos e alienados são algumas pessoas que se envolvem em demasia em religiões diversas? Algumas passam a querer que os outros – pessoas que não seguem sua religião – se convertam a sua religião e passam a adotá-la como a única para chegar a Deus. Na ânsia por isso, sua cegueira e alienação tornam-se intolerância e ignorância. As pessoas que não seguem sua religião estão errados, irão para o inferno. Você está certo, você pode apontar o dedo e julgar a torto e a direito e inclusive esquecer o que o Cristo que tanto ama diz: “Ame ao próximo como a ti mesmo”; ou até mesmo “Atire a primeira pedra quem nunca pecou.”

Jesus deixou ensinamentos, parábolas, mas ainda assim o homem o usa tortamente. Uns a utilizam para enriquecer e enganar centenas, outros a usam como pretexto para esconder sua intolerância e ignorância.
É necessário olhar com mais cautela as sociedades que atualmente sustentam regimes autoritários. Distopias foram feitas para isso, para nos alertar sobre a situação atual que passamos. Para abrir nossos olhos diante da barbárie que acontece diante de nossos narizes sem nos darmos conta.
O Conto da Aia é uma luz límpida e reluzente que nos mostra os horrores que sociedades podem tornar-se se não tomarmos cuidado com o extremismo religioso e o autoritarismo desenfreado.

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